terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

PRAIA LONTANO - prefácio de Elisa Costa Pinto


Os quinze contos reunidos neste volume apresentam uma assumida diversidade temática e estilística, verificável desde o inaugural “Praia Lontano”, até ao último, “Manhã Piscina Caixa Gravação”. No entanto, fios invisíveis se insinuam, numa rede de relações várias que, adiante, tentaremos desocultar. Quero com isto dizer que, atrás da diversidade, se ergue uma voz narrativa reconhecível e singular, que pode escapar ao leitor menos atento.
É sabido que o conto é um género exigente, que requer uma mestria literária de difícil domínio, pois habita aquela zona exígua do cruzamento da contenção da poesia com a peripécia narrativa. Ora, nesta colectânea, Pedro Góis Nogueira revela, em vários contos, essa mestria.
Caminhemos, pois, pela manta que é sempre uma colectânea e assinalemos as linhas de afinidade dos seus quadrados, já que as de diversidade são muitas e não será objectivo desta breve apresentação retirar ao leitor o prazer do desconhecido. Sinalizo como primeiro traço aglutinador da maioria dos contos a presença de um narrador na 1.ª pessoa, masculino, protagonista quase sempre de um olhar sobre si mesmo. Apenas cinco contos escapam a esta escolha que, longe de ser aleatória, obedece a um critério de adequação narrativa: enquanto a primeira pessoa é a voz que se pensa, analisa, recorda e, frequentemente, procura um autoconhecimento, a salvação ou a aniquilação, a terceira pessoa é o observador, não raras vezes irónico, de cenas do quotidiano urbano ou de percursos alheios, que situam a narrativa num tempo e num espaço reconhecível, crítico ou risível.
As personagens dos cinco contos referidos são gente comum, ou nem tanto, habitantes esfumados de uma cidade que atravessam sem deixarem grande marca mas, ainda assim, detentores de uma especificidade que lhes garante a atenção do narrador: o informador da Judiciária, em “Tu cá, tu lá”, o instável candidato a escritor, em “O Caderno”, os namorados desavindos, de “Dinossauro Júnior”, o sapateiro e a menina, no conto com este nome, o praticante de Jujitsu e o seu Mestre, em “”Sou Daqui”. É claro que a estas, poderíamos juntar outras figuras de outros contos: o vigarista atormentado, de “Aurora”, as duas jovens agarradas pela internet, em “Lá (em baixo)”, a astróloga espertalhona, de “Astrologia comestível”.

Nestes contos, a ironia, a sátira e até o nonsense assentam que nem uma luva, na combinação com divertidos e inesperados jogos de palavras e alguns diálogos muito bem conseguidos.
Creio, no entanto, que é sobretudo em alguns contos na primeira pessoa que o autor se aventura por caminhos mais ousados e experimentais, revelando o pleno da sua oficina de escrita (tema, aliás implícito ou explícito em vários contos).

Pela sua singularidade e significação, proponho um olhar particular sobre “Praia Lontano”, o primeiro conto, cujo nome se alargará a todos os outros, já que é o título do livro. Nesta narrativa inicial, parece-me residir aquilo que de essencial os contos de Pedro Góis Nogueira transportam. Numa pequena ilha vulcânica, hipoteticamente descoberta por um companheiro de Colombo, um antigo operário galego refugia-se na procura apaziguadora da Natureza pura, da solidão e de um tempo parado, sem sobressaltos. A este propósito, adverte-nos logo na primeira página “O tempo é relativo, poderão dizer. Direi que não, que o tempo aqui é um absoluto, mais um absoluto, nunca abrevia, apenas condensa”. Ora, o tempo condensado é o tempo do conto, que fixa um instante da vida, como uma fotografia. Pode até o narrador conceder-nos a sugestão do passado ou a previsão do futuro, mas é do tempo condensado que o conto se alimenta.
Tempo, solidão, autoconhecimento, mistério e poder da escrita são as grandes linhas temáticas deste conto e, afinal, deste livro. É por isso que “Praia Lontano” se me afigura portador da chave interpretativa da busca das personae do seu autor. Desde logo o nome – Lontano – lugar imáginário onde o Sul latino ecoa, e também a distância atlântica, a mesma das ilhas demandadas por tantos escritores, desde que Thomas More criou a sua 'Utopia', Camões a Ilha dos Amores, Humberto Eco, 'A Ilha do Dia Antes', Pessoa “As Ilhas afortunadas” (e fico por aqui, já que a lista seria interminável). A Ilha é sempre um lugar simbólico, de excepção, mas também de totalidade, de isolamento, mas de encontro, de terra firme e de sonho.

Ora, o protagonista de “Praia Lontano”, como os outros habitantes, apenas teme o vulcão ou a submersão, porque na mais tranquila ilha uma erupção pode mudar o curso dos acontecimentos.
E é, precisamente, o que acontece a outros protagonistas, de outros contos, perdidos numa qualquer busca de si mesmos, que se encontram – ou não – através do sobressalto do amor, das armadilhas da memória, da autodisciplina nem sempre disciplinável, do caos ou da escrita. A ilha é, enfim, a metáfora da vida de cada um, da vida vivida ou recordada com desfocagens surrealizantes (o conto “Miragem”) ou ternamente divertidas (o conto “Três Martinis no Mostruário”).

É claro que a diversidade destes contos obriga a deixar de fora muitos aspectos interessantes, mas não queria deixar de seguir a linha que nos conduz pelos caminhos da Literatura, constituída como tema de si mesma. É curioso verificar que em quase metade dos contos – sete – este tema emerge sob diferentes capas. Se em “Praia Lontano”, o mistério da ilha é revelado num livro escrito por um visitante de passagem, em “O caderno”, a escrita parece auto-comandar o indeciso escritor, que sente a imposição das palavras “umas atrás das outras, activas caldeiras vulcânicas explodidas pelos dedos, levadas de cardumes”. Se em “Dinossauro júnior”, a incomunicação do par resulta do mergulho do namorado no livro de Stephen King, enquanto a namorada desespera, em “Três Martinis no mostruário”, os livros de Amin Malouf constituem-se como elos de uma comunicação improvável e, em “Astrologia comestível”, o protagonista confessa “(...) este texto, testemunho da grande transformação que em mim se apoderou. Escrevo-o para entender melhor, sobretudo para descobrir, pela escrita - que nos faz descobrir e poder ver além, para além de nós”. Pelo meio, o eco de Álvaro de Campos e de Ginsberg em “Lobo à Colina para Alcântara” e a enumeração torrencial de nomes de escritores (influência?) no enigmático “Ela Que Vela”.
Mas é, talvez, o conto que encerra o livro aquele que vai mais longe na reflexão sobre a escrita. A propósito de 'Exercícios de Estilo', de Luiz Pacheco, o narrador (o autor?) escancara a sua experimental oficina de escrita, ao mesmo tempo que grita, sarcástico e a plenos pulmões, um manifesto à Literatura que se cozinha e que se vende, declarando - “Agradeço ao livro que eu trazia na mochila. Agradeço a este bloco de notas. Agradeço à piscina. Escrevo numa piscina, conseguem ler?” (eu acho que consigo…). 

E, enfim, termina: “Acabo. É tempo de guardar a caixa gravadora (a) escrita. De dar outro mergulho (take 3). De carregar no STOP”.


Elisa Costa Pinto

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

PRAIA LONTANO EM LISBOA - LANÇAMENTO


     

Já em casa em terras galegas quero muito agradecer a quem marcou presença e encheu a sala e me fez ficar tão contente com a minha primeira apresentação de um livro.
Um agradecimento muito especial à Elisa Costa Pinto que, com uma extraordinária apresentação, nos encheu a todos as medidas. Mais uma vez voltei a ter a grande sorte e o privilégio de poder contar com toda a sua inteligência, classe e saber. Já para não falar desse seu sexto sentido literário de grande leitora que é, e tanto nos ensina como desconcerta. Há muito da Elisa em Praia Lontano, e já vamos muito além do prefácio.

Também devo sublinhar a superior interpretação do lobo na leitura de Lobo à Colina para Alcântara pelo actor Nuno Góis - que ainda leu alguns poemas do Estrada dos Prazeres. Foi ao mesmo tempo estranho e desconcertante perceber como aquele lobo já não é meu, e que provavelmente o Nuno (já) sabe muito mais do lobo do que eu. Foi uma leitura e tanto, essa é que é essa. E é impossível não ter havido alguém que não lhe tenha sentido o toque o impacto. Uivemos a isso!
Há que destacar todo o trabalho do Rui A. Pereira, companheiro de armas e de guerrilla (salvo seja). De decisiva importância.Tanto em termos de labor como artisticamente. Esta é a minha segunda obra e é a segunda vez que tenho o Rui do meu lado. Para terem bem a ideia - ou, vá-lá, uma certa ideia - de todo aquele extraordinário talento, convido-os a irem à Rua Voz do Operário nº 62 para verem a magnífica exposição - Peles Vermelhas é o nome da série. Também sabemos que a coisa não acaba aqui...
Para finalizar quero estender os agradecimentos à editora Campo das Letras / letras papalelas, e à livraria Círculo das Letras, que além de servir de abrigo e ponto de venda das nossas obras, nos concedeu um extraordinário espaço para a apresentação do livro. Não poderia pedir mais.




 







quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

103.


[Mesquita-Catedral, Córdova, 2018]

Não fosse Sevilha e Granada a servirem de filtro e Córdova como existe já não existia. Ali, como em nenhum outro lugar, nem mesmo Granada, se sente o Al Andalus como presente dos tempos. Tem ruas e recantos onde tudo se mantém intacto, onde se fizermos acertos é como se uma civilização inteira tivesse ido dali embora a semana passada. É como um carimbo que nos marca ainda (um) fresco de um apogeu. Muito mais urgente e importante desde que o fanatismo destruiu Palmira, ou Aleppo. Depois de todas as mesquitas que se fizeram igrejas ou catedrais como a de Sevilha. Ou catedrais que se fizeram mesquitas como as de Istambul. Tal como refere o excelente Luis Récio Mateo, lendário guia da Mesquita-Catedral: "Córdoba es la continuación de Damasco". Quem somos nós para o negar. Ou como contradizê-lo quando diz que é aquele o último bastião da paz e coabitação entre as duas mais conflituosas religiões da Terra. Verdade é que Córdoba é um centro de generosidade que grava intacta sua memória, que mostra orgulhosa seu admirável instinto de conservação, capaz de um contínuo cuidado com suas mais fundas raízes. Só mesmo Córdova na mediterrânea Europa para encontramos esse fascínio que encontrou o Islão em Bizâncio sem neutralizar o românico esplendor. Viramos o disco ao contrário, sabendo que fellahmenghu quer dizer um poeta a cantar e a verdade é que os tablaos não pararam de crescer. Continuem pois os Estados Unidos a fazer filas de três horas para o Alhambra. É da maneira que podemos entrar pela Mesquita-Catedral quando nos der na gana. Pelo menos até que venha o papa.